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O Brasil atrás das grades

Abusos entre os Presos
        AUSÊNCIA DE CLASSIFICAÇÃO
        AUSÊNCIA DE SUPERVISÃO EFETIVA
        DISPONIBILIDADED DE ARMAS
        GANGUES E HIERARQUIA NAS PRISÕES
        PRISIONEIROS HOMOSSEXUAIS
        VIOLÊNCIA ENTRE OS PRESOS
        EXTORSÃO
        PRESOS JURADOS DE MORTE
        PENITENCIÁRIA CENTRAL JOÃO CHAVES


O problema é que todos são jogados juntos; assassinos são misturados aos ladrões de galinha.

--Pedro Wilson Guimarães, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados Federal(179)


PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

No Brasil, reincidentes violentos e réus primários, detidos por delitos menores, freqüentemente dividem a mesma cela, situação esta que, combinada com as condições difíceis das prisões, a ausência de supervisão efetiva, a abundância de armas e a falta de atividades, resulta em situações de abuso entre os presos. Nas prisões mais perigosas os detentos poderosos matam outros presos impunemente, enquanto até mesmo em prisões de segurança relativa, extorsão e outras formas mais brandas de violência são comuns.

Ausência de Classificação

A Lei de Execução Penal (Lei 7.210 de 1984) inclui orientações detalhadas, determinando que os presos sejam classificados e separados por sexo, antecedentes criminais, status legal (condenados ou aguardando julgamento) e outras características, reproduzindo os padrões internacionais sobre este assunto.(180) Na prática, contudo, poucas destas regras são respeitadas. As mulheres presidiárias são separadas dos homens, os menores são, grande parte, mantidos fora das prisões de adultos(181), e ex-policiais são mantidos em celas separadas dos outros presos; ainda assim, na maior parte das instituições penais, pouco mais é realizado no sentido de separar as diferentes categorias de presos.

Acima de tudo, há pouco empenho para separar os presos potencialmente perigosos de seus companheiros mais vulneráveis. Alguns estados têm penitenciárias especiais de segurança máxima para manter os indivíduos mais perigosos e propensos a fugas, mas elas contêm apenas uma pequena parcela dos presidiários; além disto, não há um sistema operante de classificação de prisioneiros por níveis de segurança--como, por exemplo, máximo, médio e mínimo-- tanto em cada prisão, como entre as diferentes prisões. Os prisioneiros são misturados igualmente ao acaso: a atribuição de celas, por exemplo, tende a ser ditada por considerações de espaço ou decidida pelos próprios prisioneiros.

Internos que aguardam julgamento são livremente misturados com aqueles já condenados. Além do grande número de prisioneiros condenados confinados junto com outros ainda não condenados nas cadeias das delegacias policiais, examinado anteriormente, existe ainda, nas penitenciárias, um grande número de presos ainda não julgados colocados junto aos presos já condenados.(182)

Ausência de Supervisão Efetiva

O censo penitenciário de 1995 contabilizou um total de 19.366 guardas (agentes penitenciários) trabalhando nas prisões brasileiras, em uma média de 4,5 detentos por guarda.(183) Contudo, a qualquer momento uma proporção surpreendentemente alta de guardas está em licença médica, ou em férias, ou por algum outro motivo ausente do trabalho. Somado a isto, pessoas nominalmente contratadas como guardas estão de fato locadas em funções administrativas em muitas prisões. Os guardas são usados também como motoristas e escolta quando os prisioneiros são levados ao tribunal ou compromissos fora da prisão, reduzindo ainda mais o número de guardas em serviço dentro das prisões. Finalmente, embora o horário dos guardas varie de estado para estado, eles acabam trabalhando um dia para cada três em que descansam.(184)

O resultado final é que a maioria das prisões tem um número muito limitado de guardas responsáveis por supervisionar um número de prisioneiros totalmente desproporcional. Na Casa de Detenção de São Paulo, por exemplo, o diretor disse que ele usualmente tem de dez a doze guardas em serviço para 1.700 prisioneiros, ou aproximadamente um guarda por andar em cada pavilhão.(185) Cada guarda, portanto, é responsável por monitorar algo entre 140 a 170 prisioneiros. O número de guardas baixa ainda mais nas segundas feiras, quando as faltas são particularmente altas, dia em que a violência na prisão mais provavelmente irrompe.

A pior prisão visitada pela Human Rights Watch em termos de supervisão de guardas inadequada foi a Penitenciária Central João Chaves, em Natal, Rio Grande do Norte. Embora vinte e quatro policiais militares fossem designados à prisão cada dia, eles foram divididos entre o anexo feminino, áreas administrativas, serviços de escolta e acompanhamento, etc., deixando somente três guardas responsáveis pelo controle interno da prisão masculina. Assim, dada uma população de 646 presidiários em dezembro de 1997, havia 215 presos por guarda. Além disto, os três guardas permaneciam parados em uma mesa próxima à entrada da prisão. Durante o dia, nas instalações da prisão, raramente os vimos levantar da mesa para monitorar a situação da população de detentos.

Muitas outras prisões tinham faltas no quadro de carcerários, senão equivalentes ao nível descritos acima. A Penitenciária Regional de Campina Grande, na Paraíba, tinha em torno de noventa e três presos para cada guarda em serviço; o Presídio Róger em João Pessoa, Paraíba, tinha sessenta e dois detentos para cada guarda em serviço e o Presídio Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, tinha uns sessenta presos por guarda, só para citar alguns exemplos. Na principal prisão de Brasília, na qual havia sessenta e um detentos em média para cada guarda em serviço, o carcereiro nos contou que ele precisaria triplicar este número para lidar com a população dos presos "satisfatoriamente".(186) O diretor da Penitenciária do Estado de São Paulo ressaltou que mesmo considerando que a população carcerária tenha crescido significativamente na última década, o número de guardas permaneceu estável.(187) Além de poucas prisões femininas, que tendem a apresentar proporções mais altas de números de funcionários, a única prisão na qual a Human Rights Watch encontrou, de alguma forma, proporções razoáveis de prisioneiros e guardas foi a Penitenciária Nelson Hungria, em Nova Contagem, Minas Gerais, onde em torno de cinqüenta guardas supervisionam 683 internos (uma média de quatorze detentos por guarda).

A proporção entre prisioneiros e carcereiros nas delegacias policiais que a Human Rights Watch visitou foi igualmente precária. Grande parte das cadeias tem apenas um guarda em serviço por vez. Este único guarda estava normalmente parado fora da carceragem e raramente iria aventurar-se a entrar para monitorar o bem estar dos presos. Em algumas instalações, como por exemplo no 3o DP, em São Paulo, encontramos uma pesada porta de ferro separando a área da carceragem, que impedia a vigilância visual e abafava o som. No Depatri, estabelecimento policial em São Paulo, os carcereiros não somente ficavam parados à distância dos prisioneiros, como eram apenas dois carcereiros por turno para monitorar algo como 350 presos.

Paradoxalmente, o baixo quadro de pessoal das instalações penais brasileiras, ao invés de forçar os guardas a uma vigilância maior, os encoraja a negligenciar ainda mais os seus deveres. Uma vez que são de tal forma excedidos em número, os guardas estão sob maior risco quando entram em contato com os presos. Dados os chocantes números de conflitos entre os internos e os episódios envolvendo tomada de reféns durante os últimos anos, não é surpresa que os guardas prefiram não fazer rondas dentro das prisões e sim, tanto quanto possível, permanecer a uma distância segura. No Presídio Central de Porto Alegre, prisioneiros afirmaram que os guardas quase nunca entram nas áreas onde vivem os prisioneiros (galerias); de fato, que os guardas "não podem entrar" nestas áreas enquanto os prisioneiros estão lá dentro.(188) A morte de guardas, embora não muito freqüente, não é um fato desconhecido. Na Casa de Detenção em Hortolândia, em junho de 1995, em um incidente particularmente brutal, prisioneiros amotinados mataram dois guardas e o diretor da prisão(189).

A corrupção entre os guardas é o fator final de contribuição para esta mistura perigosa. Os prisioneiros pagam aos guardas para que estes lhes permitam burlar algumas regras, incluindo contrabandear armas e ir até áreas da prisão nas quais normalmente lhes seria barrado o acesso, em alguns casos, para vingarem-se de inimigos lá. Como um prisioneiro da prisão masculina de Manaus disse: "Dê a um guarda R$30 e ele não vai se importar com o que você faz; ele vai lhe dar a chave da cela de outra pessoa".(190) O delegado de um distrito policial em São Paulo afirmou sem rodeios:

 

Tenho apenas alguns carcereiros e a maioria deles é corrupta. Estou tentando me livrar dos dois piores, mas é difícil provar a corrupção. Estes homens ganham aproximadamente R$300-R$400 reais por mês [aproximadamente US$265-US$355]. Os prisioneiros oferecem a eles grandes somas de dinheiro para trazer para dentro da prisão furadeiras elétricas. Tenho presos que me informam; descobri que a cela quatro está tentando comprar um conjunto de ferramentas por R$2.000. Estou tentando implantar uma nova conduta, determinando que os carcereiros sejam revistados quando entram. O detetor de metais não funciona. . .Até agora nós não encontramos armas de fogo, mas encontramos facas. Os prisioneiros até arranjam como receber pizza, entregue pelas pizzarias de sua preferência.(191)

O resultado final do baixo número de guardas e da vigilância frouxa constitui um vácuo de poder. Indisciplinados e sem supervisão, os prisioneiros brasileiros são deixados ao seu próprio governo. Com a presença escassa de guardas em muitas prisões, há muito poucos meios de prevenir que presos mais fortes, brutos, ricos e mais bem relacionados ameacem, intimidem e algumas vezes abusem violentamente de companheiros mais vulneráveis.

Disponibilidade de Armas

Armas, em particular as facas caseiras e estiletes, são abundantes nas prisões. Os carcereiros de diversas instalações nos mostraram armas que eles haviam confiscado durante buscas: pedaços de aço afiados e presos a cabos de tecido enrolado, facas apontadas e outros instrumentos perigosos. Prisioneiros de várias prisões falaram à Human Rights Watch que "todo mundo" possuía armas.

As autoridades das prisões conduzem buscas regulares, mas estas são inadequadas para lidar com a engenhosidade dos prisioneiros em produzir e contrabandear armas. Para citar um exemplo que sugere a extensão do problema, uma busca de um dia realizada na Casa de Detenção de São Paulo encontrou 250 facas.(192)

Gangues e Hierarquia nas Prisões

Muito da violência nas prisões é relacionada aos conflitos entre gangues que, por sua vez, são freqüentemente resultado da competição para controlar o tráfico de drogas na prisão. O diretor da Penitenciária Estadual de Jacuí, no Rio Grande do Sul, nos contou que em 1992 uma "guerra" violenta entre os manos e os abertos, duas gangues da prisão, forçaram as autoridades estaduais a inaugurar uma nova penitenciária de segurança máxima, antes do tempo previsto.(193) Mais recentemente, em maio de 1998, um enorme confronto de gangues na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Pernambuco, deixou pelo menos vinte e dois presos mortos.(194)

Em algumas prisões, rivalidades perigosas entre diferentes pavilhões ou alas da prisão irrompem. No superlotado Presídio Central de Porto Alegre, por exemplo, prisioneiros do segundo andar do pavilhão B tentaram "tomar" o terceiro andar no início de 1997, invadindo-o violentamente. A Human Rights Watch entrevistou um dos prisioneiros do terceiro andar que foi tomado como refém durante o assalto: "Eu fui agarrado por trás e arrastado escada abaixo. Então eles amarraram minhas mãos e pés juntos e bateram-me com paus".(195) Os outros prisioneiros ameaçaram enrolá-lo em um colchão de espuma e atear fogo, caso a polícia militar tentasse libertá-lo. Ele tem cicatrizes visíveis do episódio.

Os prisioneiros falaram da "prefeitura", da "liderança" ou dos "xerifes" de suas instalações, reconhecendo em termos formais o status dos detentos mais poderosos. No Presídio Central de Porto Alegre, ouvimos que os membros da prefeitura controlam o tráfico de drogas, que estava aumentando rapidamente, vivem nas melhores celas, detém os poucos trabalhos disponíveis aos presos, obtendo desta forma remissão da pena. Na prisão masculina de Manaus, estes líderes são estimados em número próximo a cinqüenta, em uma população de presos de mais de 500; eles controlam a venda de drogas e também determinam surras em outros prisioneiros.

Prisioneiros Homossexuais

Prisioneiros homossexuais e transexuais enfrentam dificuldades particulares, na medida em que a discriminação contra eles é intensificada na sociedade hierárquica das prisões masculinas. Alguns prisioneiros homossexuais e transexuais estão confinados na Casa da Detenção de São Paulo, a maioria em uma pequena área no pavilhão cinco.(196) Uma minoria desprezada pelo sistema penitenciário, eles não têm outra escolha senão conformar suas atitudes ao conjunto de "leis" não escritas estabelecidas por outros detentos. Nos dias de visita, por exemplo, eles têm que permanecer nas suas celas durante o dia todo; eles não podem mostrar-se por medo de aborrecer os visitantes. Se recebem visitas, eles só podem sair das celas cobertos. Cada prisão, e cada pavilhão na Casa de Detenção, tem algum tipo de regra diferente para os homossexuais, mas elas são todas similarmente degradantes e discriminatórias.

Um preso homossexual nos disse que:

 

Eles dizem que nós não temos dignidade, honra e direitos. Eles são orgulhosos de serem homens, bandidos; eles são durões...Eles nos vêm como objetos para serem usados. Se há uma rebelião, nós somos os que sofrem. Os guardas não têm controle da situação aqui dentro.(197)

Muitos prisioneiros homossexuias sobrevivem lavando roupas para outros prisioneiros e fazendo outros tipos de "serviços femininos", incluindo prostituição. Os homossexuais e travestis que vivem em seu próprio setor têm um certo grau de independência; aqueles, no entanto, que chegam sem amigos por lá, enfrentam as maiores dificuldades. Os prisioneiros homossexuais que acabam indo viver em um outro setor ("com os homens", como eles dizem) terão de trabalhar para os outros presos como escravos. "Ela se torna uma escrava sexual também" um preso homossexual acrescenta, explicando:

 

Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta pelos prisioneiros. Nós não temos valor para eles. Ninguém presta atenção para a palavra de um homossexual. Eles nos deixam falar com eles até um certo ponto. Nenhum deles beberia do meu copo. (198)

Violência entre os Presos

Dada esta conjunção de fatores causais, é fácil compreender porque explosões de violência entre os prisioneiros ocorrem com freqüência nos centros de detenção brasileiros. Exemplos de anos recentes incluem os seguintes: detentos que queriam terminar uma rebelião no início de 1998 na Penitenciária São José, em Belém do Pará, mataram três dos líderes da rebelião, atirando dois deles do alto de um dos muros da prisão; sete prisioneiros foram mortos nas cadeias policiais do Rio de Janeiro durante um período de duas semanas em julho de 1997, resultado de rivalidade de gangues; um grupo de presos da Casa de Detenção de São Paulo invadiu a cela de outro preso e o esfaqueou até a morte em maio de 1997; nos primeiros três meses de 1997, quatro prisioneiros foram mortos na seriamente superlotada cadeia pública de Vila Branca em São Paulo, sendo um dos prisioneiros esfaqueado quarenta vezes; um confronto de gangues numa prisão em Sorocaba em janeiro de 1997, deixou três prisioneiros mortos.(199)

Na Casa de Detenção de São Paulo cerca de dez presos morrem a cada ano como resultado de ferimento de faca, de acordo com os presos-enfermeiros que normalmente tratam os ferimentos dos detentos.(200) De fato, um preso foi morto em março de 1997, menos de quinze minutos após chegar na prisão, esfaqueado até a morte enquanto ainda permanecia em uma cela de triagem. Um preso-enfermeiro dos presidiários explica como a violência freqüentemente ocorre:

A maioria dos esfaqueamentos ocorre nas segundas-feiras; é dia de coleta. Após as visitas do domingo, aqueles que têm crédito vem receber. Quando os presos que devem não têm dinheiro a briga começa.(201)

No Presídio Central de Porto Alegre, uma das instalações mais perigosas inspecionadas pela Human Rights Watch, um preso nos relatou o seguinte:

 

Em três anos eu vi seis pessoas morrerem violentamente; a maioria delas devia dinheiro. Em '96, eles injetaram dez gramas de cocaína num cara; quando viram que com isto ele não morreu rapidamente, eles enforcaram ele.(202)

Oficiais desta instituição disseram que três presos morreram violentamente no ano passado, todos eles enforcados pelos outros prisioneiros. Os detentos da Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, relataram à Human Rights Watch que quatro prisioneiros foram mortos em 1997, três esfaqueados e um enforcado pelos outros presos. "Quando você fala muito, você morre; esta é a lei aqui", afirmou um preso.(203)

O Censo Penitenciário Nacional de 1994 reportava um total de 131 homicídios entre os presos e quarenta e cinco suicídios (como as descrições acima sugerem, alguns destes "suicídios" podem ter sido forçados).(204) Embora estas estatísticas não sejam nem de longe chocantes como as de outros países da América Latina, elas permanecem indicando às autoridades que elas precisam tomar medidas para prevenir a violência nas prisões. A pesquisa da Human Rights Watch sugere, de forma complementar, que o número de homicídios recentes entre os presos é substancialmente maior (ou que os números de 1994 foram desviados por sonegação de dados).(205) Infelizmente, o Censo Penitenciário de 1995 falhou em providenciar qualquer informação estatística sobre violência nas prisões.


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