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O Brasil atrás das grades

Abusos Cometidos
por Guardas e Policiais
(continuação)
        EXECUÇÕES SUMÁRIAS, TORTURA E OUTROS ABUSOS FÍSICOS
                Amazonas
                Ceará
                Minas Gerais
                Paraíba
                Rio Grande do Norte
                Rio Grande do Sul
                São Paulo
        IMPUNIDADE

Rio Grande do Norte (continuação)

PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

Um prisioneiro recapturado contou à Human Rights Watch que após ter sido preso em uma vizinhança próxima à prisão, a polícia o colocou no porta malas de uma patrulha e o levou até uma sala vazia na penitenciária, onde vários policiais tiraram-lhe as roupas, obrigaram-no a beijar suas botas e o chutaram. Este mesmo prisioneiro contou à Human Rights Watch que um outro policial entrou na sala, atingiu-o no rosto repetidas vezes e aplicou-lhe um "telefone".

O exame realizado pelos peritos nos corpos dos presos mortos durante a perseguição revela a evidência do uso de força letal desnecessária. Em quatro de seis casos, os policiais dispararam em prisioneiros fugitivos enquanto eles estavam de costas. O número de tiros disparados (uma média de seis ferimentos de bala foi encontrada em cada corpo, embora um destes corpos apresentasse quatorze ferimentos de tiro), e a concentração de ferimentos de bala na cabeça e tórax, são consistentes com a intenção de matar, ao invés de apenas ferir ou deter, os presos fugitivos. O fato de que nenhum policial foi ferido durante a perseguição e de que nenhuma arma foi encontrada com as vítimas após elas terem sido mortas lança dúvidas sobre as descrições da polícia da ocorrência de um tiroteios com os presos.

Em 8 de fevereiro de 1998, três dias após a tentativa de fuga, a Polícia Civil recebeu uma denúncia de residentes locais que o foragido Moisaniel Oliveira da Silva estaria escondido em uma casa abandonada na vizinhança de Ceará Mirim, em Natal. Segundo a versão da imprensa, a polícia foi até a casa abandonada e tentou deter Moisaniel, eles iniciaram um curto tiroteio, ferindo-o durante a troca de tiros.(279) Após resgatar Moisaniel da casa abandonada, a polícia o levou até o hospital local, onde ele foi declarado morto e levado ao legista da polícia no ITEP.

A Human Rights Watch obteve acesso ao relatório oficial da autópsia realizada no corpo de Moisaniel e encontrou-se com os legistas responsáveis pelo laudo, Dr. Abelardo Rangel Monteiro Filho, Dr. Guaraci da Costa Barbosa e Dr. José Pinto, chefe de balística do ITEP.(280) A autópsia oficial revela que Moisaniel foi morto por uma única bala que atingiu sua têmpora direita e produziu dois ferimentos: um pequeno ferimento na testa e um buraco no crânio de aproximadamente onze por cinco centímetros na saída do projétil. Dr. José Pinto nos disse que este tipo grave de ferimento na cabeça só poderia ser resultado de um tiro disparado de uma distância extremamente curta, com uma arma de grosso calibre. A autópsia oficial reporta e as declarações dos peritos sugerem uma execução sumária de Moisaniel pelos policiais ao invés de um tiroteio entre eles.

Em 13 de fevereiro de 1998, o Gen. José Carlos Leite Filho, Secretário de Segurança Pública, contou à Human Rights Watch que quatro investigações oficiais sobre o confronto entre a polícia e os presos fugitivos haviam sido iniciadas.(281) Até o momento da elaboração deste relatório, nenhuma acusação formal foi apresentada contra nenhum dos oficiais que participou da operação.

Rio Grande do Sul

Um número de detentos do Presídio Central de Porto Alegre descreveu um incidente ocorrido em setembro de 1997 envolvendo a cartucheira de um dos guardas. A cartucheira desapareceu, havia sido furtada pelos presos, levando a Brigada Militar a conduzir uma busca geral nas celas. Todos os prisioneiros dos blocos B e C foram levados para a parte de baixo do pátio onde, então, várias viaturas da polícia, incluindo várias unidades de choque equipadas para lidar com um motim, invadiram a prisão quebrando televisões e outros itens pessoais dos presos. Uma rebelião explodiu e a polícia forçou todos os presos do bloco C, galerias B-1 e B-2 a passarem por um corredor polonês. Nus, em grupos de dez, os prisioneiros tiveram de correr entre duas fileiras de policiais que os espancavam. Depois disto os presos foram deixados do lado de fora, na chuva, por dois dias e meio, sem água, comida, sanitários ou visitas.

Outros presos contaram ter apanhado por ofensas menores. Por exemplo, um prisioneiro HIV positivo, que iniciou uma greve de fome para denunciar a falta de atendimento médico, reclama ter sido atingido na cabeça pelos guardas que não concordavam com seu protesto.

São Paulo

Em vários distritos policiais de São Paulo, a Human Rights Watch ouviu denúncias de espancamentos individuais e em grupo após tentativas de fuga ou de rebelião. Ao longo destas sessões de "castigo", esquadrões especiais da polícia geralmente ordenam aos detentos que estes fiquem nus, para então os surrarem com cacetetes, paus e barras de ferro, fazendo-os passar por duas fileiras de policias com estas armas (corredor polonês).

Na metade de novembro de 1997, o dia seguinte a uma tentativa de fuga do 9o DP, em torno de dez tropas especiais da polícia de choque entraram na carceragem do distrito e bateram nos presos. Eles tiraram todos os presos das celas três e quatro para fora, fizeram-os tirar toda a roupa e ir para o pátio em grupos de cinco. Lá os presos eram obrigados a colocar a cabeça contra o muro e eram atingidos três ou quatro vezes com pedaços de madeira. A maioria dos presos foi atingida nas nádegas, mas alguns também nas costelas e alguns deles nos testículos. A polícia também quebrou os objetos pessoais dos presos, colocando tudo em um pilha e esvaziando sobre ela recipientes pessoais como café e açúcar. Como nos relata um preso: "eu perdi tudo na invasão: meu travesseiro, minha toalha, cartas da minha namorada e dos meus pais, barbeador, sabonete, uma calça jeans, várias camisetas, um chapéu novo e meu colchão de espuma".(282) Presos da cela cinco foram forçados a levar sua televisão e jogá-la no chão na frente da polícia.

Detentos na carceragem do Depatri, no Carandiru, contaram como a polícia entra freqüentemente na carceragem atirando; eles apontaram buracos de bala na parede para os pesquisadores da Human Rights Watch. Indo de cela em cela, a polícia força os presos a ficarem nus e a sair das celas; então, às vezes batem neles e quebram seus pertences.

Cinco prisioneiros fugiram do 35o DP de São Paulo na semana anterior à visita da Human Rights Watch; outro preso foi baleado pela polícia durante a tentativa de fuga. Cerca de quinze minutos após incidente, quarenta tropas de choque da polícia chegaram ao local. Eles entraram na prisão atirando e batendo nos presos. Os presos gritaram que eles queriam que a imprensa entrasse, a polícia teria respondido dizendo, "nada de imprensa, vocês é que vão pra prensa hoje!" Todos os presos tiveram que tirar a roupa e atravessar um corredor polonês, inclusive o preso mais idoso do local, um senhor de cinqüenta e dois anos entrevistado pela Human Rights Watch. "Eles falaram para ir devagar, porque se for rápido tinha que passar [através do corredor] de novo", explicou ele.(283) A polícia atingiu alguns detentos com bastões de beisebol, fazendo-os ajoelhar no chão. Alguns dos policiais trouxeram baldes com urinas e fezes de um vaso sanitário entupido e jogaram sobre os prisioneiros no chão. No final, a polícia prendeu todos os presos, a maioria coberta de cortes e hematomas, em duas das cinco celas disponíveis e sessenta pessoas em cada cela. A imprensa não pôde visitá-los até o dia seguinte.

Uma rebelião no Cadeião de Pinheiros, em 30 de setembro de 1997, resultou em um caso pavoroso de brutalidade policial. No dia anterior, internos e a polícia iniciaram uma discussão quando os presos reclamaram que o café da manhã estava atrasado; um policial respondeu-lhes atirando para cima e a esmo dentro da cadeia. Os presos coletaram as cápsulas utilizadas e as balas, levando-as ao diretor do estabelecimento, tentando convencê-lo a disciplinar o policial. Quando o policial apareceu para trabalhar como de costume, em 30 de setembro, presos indignados com a situação decidiram tomá-lo como refém e rebelarem-se para pedir melhor tratamento. Eles queriam permissão para que seus filhos pudessem visitá-los duas vezes ao mês, ao invés de apenas uma, e queriam um dia inteiro de recreação ao ar livre, ao invés de apenas duas horas por dia. Quando o portão da prisão foi aberto, um grupo de aproximadamente vinte presos disparou, buscando prender vários reféns, incluindo três homens oficiais da polícia, uma mulher oficial de justiça e outra assistente de enfermagem.

Um jovem detento foi pego pela polícia nos instantes iniciais da revolta. A polícia acertou-lhe atrás da cabeça com uma barra de ferro, deixando-o inconsciente. Ele acordou momentos depois na entrada da cadeia; um policial estava ordenando que ele revelasse quem era o líder da rebelião e quem entre os detentos estava armado. O preso nos falou:

 

Um policial estava atrás de mim, segurando meus braços. Eu caí, então outro me acertou com a barra de ferro. Ele me bateu quatro vezes na cabeça e no pescoço, me tirando do ar, de vez. Quando abri minha boca, cuspi dentes. Então eles começaram a me bater com um pedaço de madeira nos meus ombros e no meu peito. Finalmente, eles me arrastaram pelos pés até a entrada, me chutaram e me jogaram contra a chapa de ferro da entrada. Eu caí junto ao portão meio inconsciente. Enquanto eu estava no chão um policial enfiou uma faca na minha mão, aqui (entre o pulso e o polegar). Eu senti aquilo mas não me movi. O policial falou para os outros: "podem chamar o IML, este cara já era".(284)

O preso acordou mais tarde em um batalhão da Polícia Militar. Um médico visitou-o e costurou sua boca e mão. Naquela noite ele foi transferido para uma cela isolada de segurança máxima no Dakar 4, onde ele foi mantido sozinho por trinta dias. Durante este período a família do preso não tinha a menor idéia do que havia acontecido com ele e de onde ele estava. Quando a Human Rights Watch entrevistou-o, em novembro de 1997, ele tinha perdido dois dentes de um lado da boca e dois outros dentes estavam quebrados; o ferimento em sua mão ainda estava cicatrizando.

A violência oficial também é um problema sério nas prisões de São Paulo embora, desde o massacre na Casa de Detenção do Carandiru, as autoridades prisionais paulistas têm sido mais cuidadosas em evitar força letal, baseando-se mais em negociações para resolver situações tensas. Notadamente, a rebelião de ano novo em 1998 na prisão de Sorocaba, na qual quinze guardas e centenas de familiares foram tomados como reféns, terminou sem derramamento de sangue. Mas enquanto mortes têm sido evitadas, surras e espancamentos são freqüentes. Internos na Casa de Detenção, particularmente aqueles em áreas de castigo, descrevem numerosos incidentes envolvendo a brutalidade dos guardas.(285) Durante a visita da Human Rights Watch às instalações, vimos barras de ferro com uma das extremidades recoberta com pano como para facilitar o manuseio, exatamente como os presos haviam descrito, em mais de um posto de guarda ao redor da prisão.

Impunidade

Impunidade por abusos praticados contra os prisioneiros, mesmo em massacres de larga escala, constitui um problema crônico que encoraja os abusos subseqüentes. Não obstante o alto grau de violência oficial contra os prisioneiros, a Human Rights Watch encontrou muito poucos casos em que oficiais foram criminalmente processados por suas ações e um número menor ainda de condenações obtido. Em Porto Alegre, em 1993, um cantor foi detido, acusado de estuprar uma adolescente, foi abusado sexualmente por outros internos que eram encorajados pelos guardas; estes guardas foram processados e teriam sido sentenciados a um longo período de confinamento.(286) Mas estes casos são extremamente raros, assim como é raro o fato de um cantor ser mantido na prisão.

Na década passada destacaram-se diversos incidentes nos quais policiais, militares ou civis, mataram um grande número de prisioneiros. Nenhum desses incidentes, não importando quão repugnante, resultou em mais que uma breve detenção dos perpetradores. O dois casos mais proeminentes entre esses, continuam tramitando na Justiça e são descritos logo abaixo. Por terem recebido cobertura substancial da mídia, forte interesse nacional e atenção constante em nível internacional, a falta de resolução destes casos é especialmente indicativa da impunidade que impera em abusos desta natureza.

O primeiro caso ocorreu na seqüência de uma tentativa de fuga frustrada, no 42o DP, no Parque São Lucas, São Paulo, em 2 de fevereiro de 1989. Para punir os cinqüenta e um presos que tentaram fugir, um grupo de vinte e nove policiais militares e dois policiais civis forçaram os prisioneiros a ficarem nus e a passar através de um corredor polonês. Após baterem gravemente nos presos, a polícia forçou-os a entrar em uma pequena cela sem ventilação. Um terceiro policial civil, o delegado do distrito, chegou no local logo em seguida mas falhou em ordenar a retirada dos homens daquela cela, não obstante os gritos desesperados e a evidência de que muitos estavam morrendo. Após mais ou menos uma hora, dezoito prisioneiros tinham morrido asfixiados.

Na Justiça Comum que julga os policiais civis, um dos dois oficiais envolvidos foi condenado e não tem mais direito à apelação. Entretanto, este policial não foi mantido preso enquanto aguardava o julgamento; fugiu da justiça e foi preso em julho de 1998. A condenação do segundo policial está sob apelação. O delegado do distrito policial foi julgado e absolvido, mas de acordo com a última informação recebida pela Human Rights Watch, a absolvição foi revertida em instância de apelação e ele deverá ser julgado novamente este ano.(287)

O caso contra a Polícia Militar arrastou-se por quase oito anos na notoriamente ineficaz Justiça Militar, antes de ser transferido para a Justiça Comum, de acordo com uma lei de 1996 (Lei 9.299/96) que transferiu os casos de homicídio doloso da Justiça Militar para a competência da Justiça Comum. No presente momento, vinte e sete policiais militares enfrentam acusações na Justiça Militar (dois morreram desde o incidente de 1989). Estes policiais continuam na ativa, embora estejam restritos aos deveres administrativos até o final do processo.

Alguns dias após o massacre, Americas Watch (agora a Divisão das Américas da Human Rights Watch) entrou com uma petição junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Centro para Justiça e Direito Internacional (CEJIL), subseqüentemente, aderiu. Em 1997, em um estágio bastante avançado do processo perante a Comissão, o Brasil solicitou à Comissão para intervir na busca de uma solução amistosa com os peticionários. Em 9 de janeiro, o governador Mário Covas, de São Paulo, assinou um decreto autorizando indenizações às famílias das vítimas, em uma quantia de cerca de R$30.000 por dependente. Também como parte das negociações para chegar a uma solução amistosa, o governo brasileiro concordou em apressar o processo dos policiais civis e militares envolvidos e reconhecer, publicamente, sua responsabilidade internacional pela violação.

O outro caso dos mais notório e importante é o massacre do Carandiru. Em 2 de outubro de 1992 , após um motim na Casa de Detenção de São Paulo, localizado dentro do complexo do Carandiru, a Polícia Militar invadiu a prisão e matou 111 presos. A polícia fez pouco ou nenhum esforço para negociar com os presos antes de entrar. Quando as tropas de choque da polícia invadiram o local, após ganharem o controle da situação, obrigaram os presos a ficarem nus e executaram dúzias deles, inclusive vários que estavam tentando esconder-se debaixo das camas. Nenhum policial foi ferido por tiro, minando a versão oficial de que a polícia teria travado um "tiroteio" com os presos. O comandante da polícia (Cel. Ubiratan Guimarães), que continua mantendo esta versão dos eventos, foi eleito para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Como deputado estadual, posição que ocupava até o início deste ano, beneficiou-se da imunidade parlamentar, mesmo por crimes passados.

No início de 1996, logo após a aprovação da lei que permitiu transferir para o sistema da Justiça Comum, entre outros, o caso do 42o DP (Parque São Lucas), a Justiça Militar decidiu ceder a jurisdição sobre o caso do Carandiru. No momento, o processo contra 120 policiais, inicialmente indiciados na Justiça Militar, está tramitando na Justiça Comum. Nenhuma data para julgamento foi até agora agendada.(288)


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