click click Índice click


 

O Brasil atrás das grades

Abusos Cometidos
por Guardas e Policiais
(continuação)
        EXECUÇÕES SUMÁRIAS, TORTURA E OUTROS ABUSOS FÍSICOS
                Amazonas
                Ceará
                Minas Gerais
                Paraíba
                Rio Grande do Norte
                Rio Grande do Sul
                São Paulo
        IMPUNIDADE

Minas Gerais

PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

Presidiários detidos no Departamento de Investigações em Belo Horizonte descrevem a rotina de abusos físicos e punições por tentativa de fuga. Um preso explica:

 

Quando teve uma tentativa de fuga aqui em outubro a Polícia Civil entrou. A cela número sete estava cavando um túnel. Tinha uns trinta de nós em uma cela. A polícia levou a gente para o pátio completamente nus. Haviam uns quinze policiais com uma mangueira. Eles armaram um corredor polonês e a gente teve que correr através dele. Eles batiam na gente com paus tipo bastões de beisebol. Todos os policiais participaram. A gente teve que passar por isto, um por um.(264)

Na penitenciária Nelson Hungria, em Nova Contagem, vários presos contaram à Human Rights Watch sobre a violência da Equipe E, uma unidade de guarda que trabalha na prisão. Um jovem prisioneiro descreveu o que aconteceu depois que os agentes encontraram maconha em sua cela, durante uma busca realizada em 30 de dezembro de 1997:

 

Eu estava no pátio com os outros presos quando aconteceu. Eles me levaram para minha cela e fizeram eu tirar minhas roupas. Havia três deles, Juscelino, que é o chefe da segurança, Milton e um outro rapaz, e eles começaram a bater em mim e a me chutar. Eles também me deram um "telefone". Meus ouvidos ainda estão doendo daquilo. Então eles me levaram para o prédio da administração para falar com o diretor. Foi então que a minha irmã me viu, porque ela estava lá tentando me visitar e saber onde eu estava. Eles não me deixaram ver minha irmã.(265)

Paraíba

Um prisioneiro da Penitenciária Regional de Campina Grande (conhecida como "Serrotão") contou à Human Rights Watch que quando ele chegou na prisão em junho de 1995 com seis outros internos, os guardas os recepcionaram com uma surra. Ordenando aos presos que retirassem a roupa, os guardas teriam dito a eles "vocês querem saber quais são as regras aqui? As regras são que vocês apanham". Então os guardas o chutaram e bateram nele com um cipó-de-boi (chicote fino de couro cru). Vários prisioneiros descreveram esta arma, que parece ser uma especialidade local. Outro prisioneiro falou sobre um incidente mais recente no qual agentes algemaram alguns prisioneiros, que eles achavam ter alguma droga, e então arrancaram-lhe as unhas dos dedos do pé. Contudo, os prisioneiros repararam que nenhum preso apanhou desde a chegada, seis meses antes, de um novo diretor na prisão, que tinha uma nova abordagem para manter a disciplina.

Um avanço similar, que seguiu à mudança de um diretor, foi percebido na Penitenciária de Segurança Máxima de Mangabeira, em João Pessoa. Foi relatado à Human Rights Watch que o então diretor, que estava no comando por quase um ano quando nós visitamos a prisão, "não permite espancamentos, mas dois anos atrás, quando eu cheguei aqui pela primeira vez, você não podia entrar no local sem apanhar".(266) Não obstante, uns poucos exemplos excepcionais de violência dos guardas nos foram descritos. Seis meses antes da nossa visita, em um sábado quando o diretor não estava, os guardas encontraram uma faca em uma das celas. Após colocarem algemas em todos os prisioneiros da cela, trouxeram-os para a área administrativa da prisão.

 

Era cedo da tarde e eles tinham bebido uísque. Eles despejaram doses em nossas cabeças. Eles ficavam perguntando "de quem é esta faca?" Eles estavam realmente bêbados. Ninguém respondeu a pergunta deles e eles ficaram furiosos e nos espancaram a valer. Eles nos deram chutes e socos e bateram na gente com um marrote (chicote de couro de porco). Eles quebraram meus polegares... Uma semana depois esses agentes foram transferidos.(267)

Outro prisioneiro descreveu como o subdiretor quebrou sua dentadura uma semana antes da nossa visita. Foi após uma revista nas celas dos prisioneiros, na qual os agentes tinham revirado os lençóis, espalhando seus artigos de higiene pessoal e deixando todos os pertences dos presos empilhados no chão. Ao retornar à cela e conferir a desordem este prisioneiro então reclamou. O subdiretor então virou-se e perguntou: "quem disse isto?" O prisioneiro indicou que havia sido ele, e o subdiretor perguntou-lhe: "você pensa que tem o direito de dizer isso?" Quando o prisioneiro respondeu afirmativamente, o subdiretor fingiu puxar o revólver fora do coldre e atirar nele, então desfechou um soco em seu rosto, quebrando sua dentadura e cortando seu lábio.

A apoteose da violência crônica do sistema penitenciário foi a chacina no Presídio do Róger, em João Pessoa, em 29 de julho de 1997. Os eventos começaram quando um punhado de prisioneiros tentou iniciar uma fuga. Armados com facas os prisioneiros escalaram para fora das celas de isolamento onde eles estavam sendo mantidos e tomaram quatro agentes e três outros prisioneiros como reféns. Vestindo, então, os uniformes dos guardas, os prisioneiros procuraram sair do presídio, mas encontraram no caminho o diretor do presídio. Tomando o diretor como refém do grupo, o levaram de volta ao pavilhão, amarraram-o, e colocaram-no em uma cela de triagem. As negociações com as autoridades seguiram-se, durando das 17:30 até as 23:00. Os prisioneiros exigiam carros, armas, coletes à prova de balas e munição. Enquanto isto, várias unidades da tropa de choque da Polícia Militar cercavam a prisão.

Não é claro quem ordenou a invasão da prisão pelas tropas militares às 23:00; os dois comandantes militares no comando disseram que não foram eles.(268) Uma vez que a ordem foi dada, um preso conhecido como Ivan, um membro do grupo de prisioneiros confiáveis pelas autoridades da prisão, usou um pé-de-cabra para quebrar as correntes do portão principal, e uma horda de policiais (os presos estimam que seriam uns cem deles) correu para a prisão, atirando bombas de gás lacrimogêneo e atirando. Ao mesmo tempo, a Polícia Militar explodiu uma bomba ao lado do muro da prisão produzindo um estrondo enorme. Os sete prisioneiros rebelados estavam em uma cela com o diretor, mas quando a invasão começou eles libertaram o diretor e os outros reféns, que fugiram do aglomerado de celas.

De acordo com alguns internos, testemunhas oculares, a polícia invadiu as celas junto com um grupo de colaboradores, presos que trabalhavam na cozinha e que eram desprezados pelo restante da população do presídio. Ivan, que anteriormente tinha aberto o portão, era o líder reconhecido deste grupo.

A polícia entrou atirando: um prisioneiro, atingido duas vezes no peito, morreu; outro foi atingido na cabeça; um terceiro foi atingido no pescoço e nas costas; um quarto, na coxa, e o quinto, ferido nas costas.(269) Contudo, ao menos sete dos oito prisioneiros que morreram no incidente não foram mortos no ataque inicial da polícia, mas quando a situação já estava sob controle. Ao invés de levar os prisioneiros feridos e moribundos para o hospital, a polícia maltratou-os um pouco mais e saiu de cena, gritando triunfante que havia vencido a guerra, deixando os prisioneiros nas mãos de seus próprios inimigos, os trabalhadores da cozinha. Armado com o pé-de-cabra, Ivan conduziu um assalto brutal aos prisioneiros feridos, terminando com eles ali mesmo. Todos os corpos apresentavam marcas de múltiplas armas: facas, balas e instrumentos rombudos. O médico legista que mais tarde examinou os corpos disse que tinham sido as mortes mais violentas que ele havia visto em dezessete anos de prática. Outro médico legista que examinou os relatórios das autópsias afirmou que "a ferocidade das agressões, a multiplicidade dos golpes, a eleição das partes atingidas e a diversidade das armas e dos instrumentos utilizados levaram os peritos oficiais a afirmar com tanta segurança que oito dos cadáveres examinados apresentavam evidências inquestionáveis de crueldade, de uma maldade desnecessária e injustificável".(270)

Todos os sete prisioneiros envolvidos na tomada dos reféns foram mortos, assim como um preso das celas vizinhas ( uma cela de triagem conhecida como reconhecimento).(271) Quatro outros prisioneiros das celas vizinhas receberam tiros e foram feridos pela Polícia Militar. Quando todos os pretendentes a fugitivos estavam mortos, o pessoal da faxina e da cozinha retirou os corpos para fora da prisão, arrastando-os pelos pés, empilharam-os em um caminhão e então os levaram ao hospital.

A investigação sobre as mortes estava sendo realizada quando a Human Rights Watch visitou a Paraíba, em dezembro de 1997. Em uma entrevista com o promotor da Vara de Execuções Penais que estava acompanhando o caso, fomos informados que a operação foi considerada um sucesso porque os reféns foram salvos. Na sua opinião, era pouco provável a instauração de um processo criminal; como ele diretamente afirmou: "ninguém condena pessoas que matam bandidos aqui no Brasil".(272)

No final de março de 1998, entretanto, um promotor local denunciou nove policiais militares e quatro detentos, incluindo Ivan, pelas mortes, acusando os policias por homicídio e os detentos envolvidos por homicídios e lesões corporais.(273) A denúncia enfatizava que todas as testemunhas entrevistadas falaram do modo selvagem em que foram exterminadas as vidas dos amotinados, assim como indicava que, após o massacre, os policiais que participaram da operação comemoraram a vitória intensamente, até o ponto de fazer disparos ao ar.

Rio Grande do Norte

Em 5 de fevereiro de 1998, mais de trinta prisioneiros tentaram escapar da Penitenciária Central João Chaves, em Natal, Rio Grande do Norte. Reagindo à tentativa de fuga, policiais militares recapturaram dezesseis prisioneiros, feriram pelo menos dez e mataram sete. Os sete prisioneiros mortos foram identificados como sendo Antônio Ferreira dos Santos (conhecido como "Bonifácio"), Carlos Alberto Quirino Targino, Erinaldo Miranda Máximo ("Chocolate"), João Maria Vicente de Souza ("Bahia"), Jonierison Linhares do Ó ("Cigano" ou "Cabeludo"), Francisco de Freitas da Silva ("Chita") e Moisaniel Oliveira da Silva. A polícia sustenta que as mortes ocorreram durante tiroteios travados entre eles e os presos. Testemunhas oculares e peritos, contudo, revelam que a polícia utilizou-se de força excessiva na perseguição dos prisioneiros fugitivos. Em várias das mortes, como detalhamos a seguir, o número de tiros e a distância da qual foram disparados sugerem que os presos foram sumariamente executados.

Os prisioneiros recapturados relataram à Human Rights Watch que; na noite de 5 de fevereiro, um grupo de aproximadamente trinta presos montou duas escadas improvisadas no muro traseiro da prisão.(274) Para conseguir fugir, os presos tinham que escalar o muro que circunda a prisão, correr uns cem metros entre o muro e uma segunda cerca de arame farpado e engatinhar através de buracos na cerca para a rua no lado de fora, onde carros e motocicletas os esperavam. De acordo com relatos da imprensa, um guarda da prisão descobriu os presos fugitivos quando eles estavam escalando o primeiro muro e rapidamente informou outros guardas sobre a tentativa de fuga.(275)

Os prisioneiros contaram à Human Rights Watch que os guardas da prisão abriram fogo imediatamente contra os fugitivos, ferindo muitos deles que estavam escalando o muro ou correndo os cem metros de distância entre o muro e a cerca de arame. De acordo com os prisioneiros, o primeiro fugitivo morto pela polícia foi Targino, atingido quando tentava escalar o muro traseiro. Após ter sido atingido, Targino caiu morto dentro da prisão. A autópsia oficial mostra a entrada de uma única bala nas nádegas, que penetrou seu tronco e acabou alojada dentro do peito.(276)

Todos os dez prisioneiros entrevistados pela Human Rights Watch relataram que; após forçarem os prisioneiros recapturados a deitar de rosto para o chão, os policiais continuaram a atirar naqueles que estavam ainda tentando fugir, mirando na direção deles e em torno dos que já estavam efetivamente capturados. Os prisioneiros recapturados relataram à Human Rights Watch que durante a fuga e no período seguinte a ela, a polícia atirou em, no mínimo, oito presos que estavam fugindo; aqueles recapturados afirmaram também que a polícia ordenou que eles rastejassem até próximo aos guardas da prisão, que então chutavam e batiam repetidamente nas cabeças e nos corpos dos presos com a coronha de suas armas.

De acordo com relatos da imprensa, mais de 200 policiais organizaram uma busca na região vizinha para encontrar os presos que haviam logrado fugir da penitenciária.(277) Residentes nas cercanias adjacentes ao muro traseiro da prisão, que pediram para permanecer não identificados, disseram à Human Rights Watch que a polícia disparou repetidamente nos presos enquanto eles entravam na vizinhança, fazendo com que eles, os residentes, pedissem para a polícia parar de atirar e procurar fugir para dentro de suas casas, por medo de serem eles os atingidos pelos tiros da polícia.(278) Uma moradora, que testemunhou a polícia matar um detento fugitivo escondido em sua propriedade, informou à Human Rights Watch que o policial disparou dúzias de tiros no prisioneiro desarmado que havia se escondido debaixo de um tanque, nos fundos de sua pequena área de serviço. A moradora também falou à Human Rights Watch que, até o momento da entrevista, mais de uma semana após o incidente, ela não havia sido chamada pela polícia para prestar um depoimento oficial sobre os acontecimentos.


click click Índice click