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O Brasil atrás das grades

Detentas (continuação)
        REBELIÕES E PROTESTOS
        LAÇOS DE FAMÍLIA
        VISITAS CONJUGAIS
        TRABALHO

Disciplina, Punição e Tratamento pelos Guardas

PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

Obedecendo às normas internacionais, a LEP estipula que as detentas devem ser supervisionadas por guardas mulheres.(336) Na prática, algumas prisões femininas empregam tanto guardas masculinos como femininos, embora normalmente imponham restrições sobre as áreas nas quais os guardas masculinos possam entrar, proibindo, por exemplo, os homens de entrarem nas áreas onde vivem as detentas ou nos banheiros. Detentas em diversos estabelecimentos contaram-nos, não obstante, que guardas masculinos freqüentemente entravam nessas áreas; em um estabelecimento elas chegaram mesmo a dizer que relações sexuais entre os guardas e as detentas já ocorreram no passado.(337)

A Human Rights Watch recebeu muito menos queixas de violência praticada por funcionários nos estabelecimentos femininos do que nos masculinos. Espancamentos eram raros na maioria dos estabelecimentos - com os incidentes mais sérios envolvendo policiais de fora, em vez dos funcionários das prisões - e mesmo a sanção de isolamento em celas separadas não era usada com freqüência (de fato, o Presídio Feminino de Manaus não tinha nem mesmo uma cela de punição). "Eles nunca batem na gente", disse-nos uma detenta de Natal. "Uns dois anos atrás, tinha uma agente que nos batia de vez em quando, mas ela foi demitida".(338)

Em geral, as relações entre prisioneiros e guardas nas prisões femininas eram muito mais cordiais e amigáveis do que nos estabelecimentos masculinos, registrando-se em alguns casos afeição genuína.

Algumas mulheres no Presídio Feminino de João Pessoa tinham um incidente terrível para contar. Uma nova detenta trancada em uma cela de triagem pediu a uma amiga que estava do lado de fora para emprestar-lhe um isqueiro. Já que ela era proibida de fumar na cela, um guarda masculino que ouviu o pedido enfureceu-se e trouxe-a para uma cela disciplinar no final do corredor. "Ele me deu um chute na barriga; eu caí e ele me pegou e estrangulou com uma toalha de banho. Eu tentei gritar. As meninas da cela coletiva me ouviram, ficaram assustadas e gritaram. 'Não bate nela.' Então, ele me soltou".(339) A mulher passou duas horas algemada e depois dezoito dias presa na cela disciplinar.

Algumas mulheres em João Pessoa também reclamaram conosco sobre agressões verbais, especialmente partindo dos guardas masculinos. "Eles nos humilham e nos insultam. Chamam a gente de 'vaca, puta, macaca, bandida, desgraçada, cara de diaba.'" Reclamações semelhantes foram trazidas por mulheres na Penitenciária Feminina de São Paulo, onde as detentas disseram-nos que os guardas masculinos referem-se a elas de vez em quando como "prostitutas". Na Penitenciária Feminina de Manaus, detentas disseram-nos que guardas masculinos entraram diversas vezes para agredir verbalmente e fisicamente uma presa doente mental.

Um relatório de 1997 sobre mulheres presas na Casa de Detenção de Tatuapé, em São Paulo, narrava problemas semelhantes com guardas masculinos. Em particular, o relatório afirmava que a delegação recebera quinze queixas de espancamento e maus tratos dentro da instituição. Todas elas identificavam o mesmo guarda, afirmando que ele agia de forma violenta e arrogante e pediam para não serem identificadas porque temiam represálias.(340)

Rebeliões e Protestos

Rebeliões e protestos são relativamente pouco freqüentes nas prisões femininas. As autoridades carcerárias de alguns estabelecimentos, tais como as prisões femininas de Manaus e Natal, afirmaram que tais incidentes nunca ocorrem. Como ocorre nas prisões masculinas, porém, quando as revoltas acontecem de fato, são quase sempre reprimidas violentamente.

Na tarde do dia 12 de janeiro de 1997, policiais civis e militares espancaram brutalmente cerca de oitenta e cinco detentas na cadeia pública de Santa Rosa de Viterbo, em São Paulo. As mulheres faziam um protesto, barulhento porém pacífico, contra a recusa das autoridades em permitir que uma mulher comparecesse ao funeral de seu neto. As detentas gritavam e batucavam em embalagens de plástico. Em vez de resolver o problema verbalmente, o delegado invadiu a cadeia com cerca de quatorze homens. Armados de cabos de vassoura e cassetetes, os policiais bateram em quase todas as mulheres, trinta das quais de forma especialmente severa.

As mulheres fotografaram secretamente seus ferimentos e, através de visitantes, as fotos chegaram à Pastoral Carcerária, que relatou os espancamentos à Ouvidoria da Polícia de São Paulo. Depois de uma extensa investigação, o Ouvidor não encontrou qualquer evidência em apoio às afirmações dos policiais de que as mulheres haviam incendiado os colchões e provocado a invasão, concluindo que "não houve uma rebelião e sim um espancamento injustificado".(341) O relatório formal do Ouvidor sobre o incidente recomendou que os policiais fossem punidos tanto criminal como administrativamente.(342) Até janeiro de 1998, contudo, as punições foram bastante leves.(343) Ao mesmo tempo, doze detentas foram processadas pela prática de motim.(344)

A Penitenciária Feminina de São Paulo foi cenário de diversas rebeliões em 1997, durante um período em que estava superlotada ao extremo. Na primeira rebelião, ocorrida em fevereiro, um grupo de mulheres que queria transferência para prisões menos cheias tomou dois guardas como reféns. Uma detenta descreveu como o incidente foi debelado:

 

[As mulheres com os reféns estavam no pavilão quatro.] Uns oito caras da tropa de choque vieram com umas barras de ferro e bateram na gente. Eles começaram no pavilhão quatro e de lá foram para o três e o dois. Todos eles eram de fora ou guardas [homens] que faziam a segurança externa. Eles não foram no pavilhão um. As agentes femininas saíram correndo, elas abandonaram os pavilhões. A gente podia ver os homens chegando e ouvir os gritos. Uns homens estavam fardados e outros de calça de brim. A gente correu para as celas, cinco ou seis de nós em cada cela. Eles chegaram com as barras de ferro na mão, fizeram um corredor polonês e umas mulheres tiveram que passar por ele.(345)

Muitas mulheres ficaram feridas durante a invasão e a perna de uma delas foi quebrada. A maioria das mulheres feridas foi transferida para outras prisões; algumas foram mandadas para um manicômio.

Uma segunda rebelião aconteceu em 17 de julho do mesmo ano. Essa começou espontaneamente.

 

Uma garota se queimou uma manhã depois de apanhar da polícia, quando ela foi presa em uma cela de castigo (cela forte) no segundo andar do pavilhão um. Ela colocou fogo no colchão e eles demoraram um pouco até ir tirar ela de lá, por isto ela se queimou muito. A pele estava saindo fora. Ela estava gritando e todo mundo viu. A rebelião começou à tarde. Todo mundo estava revoltado com o que aconteceu. A diretora vendo como a gente estava perguntou se a gente não estava revoltada por falta de droga, como se todo mundo fosse viciada. Isso incendiou a gente. Começamos a gritar pra diretora, ela saiu e começaram a quebrar as oficinas.(346)

Tropas de choque reuniram-se na entrada principal mas não invadiram a prisão. Em vez disso, dois juizes vieram e falaram com duas representantes das detentas e a rebelião cessou. Após a revolta, as autoridades carcerárias retiraram as televisões dos pavilhões do térreo e mudou o horário de trancamento das celas de 21:30 para 18:00. Um grupo de cerca de dez detentas foi transferido; dezesseis outras detentas, supostamente líderes da revolta, algumas das quais afirmaram para a Human Rights Watch que estavam sendo pegas como bode expiatório injustamente, foram confinadas por trinta dias em celas em uma área conhecida como "atrás do muro", no segundo andar do primeiro pavilhão. Durante todo esse tempo, elas não foram levadas ao ar livre e não puderam assistir televisão nem ouvir rádio. "A gente só tinha cinco minutos para tomar uma ducha com seis guardas, homens, nos vigiando".(347) Elas foram levadas então a uma área vizinha chamada de "em frente ao muro", onde ficaram detidas por mais noventa dias de "tratamento psicológico", que envolveu vinte e três horas por dia de confinamento nas celas e sessões ocasionais de terapia em grupo.

Logo depois que as mulheres foram transferidas para a área em frente ao muro um grupo de guardas, principalmente masculinos, realizaram uma "blitz" em suas celas. Uma mulher nos contou:

 

Tinham dois caras que estavam bêbados. Um deles deu um tapa no rosto da Irene e cuspiu nela, chamando ela de puta por que ela se queixou. Depois, quebraram as coisas dela. O mesmo cara quis bater na Cristina, mas uma agente não deixou.(348)

Laços de Família

Manter contato com suas famílias é uma questão crucial para as detentas. Quase todas elas têm filhos, dentro ou fora da prisão, assim como maridos e companheiros, além de outros parentes e amigos. Essas mulheres têm medo de perder a custódia de seus filhos, de que seus parceiros as abandonem, e de que suas famílias e amigos as esqueçam. Talvez ainda mais do que os detentos, as detentas enfrentam sérios obstáculos para preservar suas conexões sociais.

Para começar, algumas detentas são rejeitadas por suas famílias e recebem poucas ou nenhuma visita, talvez devido ao tradicional estigma atribuído às mulheres que são presas. No 18o DP, por exemplo, uma das oito carceragens de polícia na cidade de São Paulo que dispõem de instalações femininas, o delegado assistente nos disse que aproximadamente vinte - ou mais de um terço - dentre as cinqüenta e oito detentas não recebiam visitas.(349)

Além disso, as regras de visitação e as condições de vários estabelecimentos para mulheres deixam muito a desejar. Na Penitenciária Feminina de São Paulo, em especial, as mulheres podem receber apenas algumas horas de visita por semana, em uma área lotada e barulhenta.(350)

As áreas de visitação da Casa de Recuperação Feminina Bom Pastor, em João Pessoa eram extremamente bem cuidadas e simpáticas, com árvores e bancos, mas as mulheres reclamaram que era demasiado pequena para acomodar quase setenta visitantes que vêm todos os domingos. As detentas do 18o DP, em São Paulo podiam receber apenas uma visita semanal, de duas horas de duração, todas as quartas-feiras.

A Constituição de 1988 determina que as detentas fiquem com seus bebês durante todo o período de amamentação.(351) Para implementar essa norma, a LEP declara que cada prisão feminina deve ser equipada com um berçário onde as mães possam amamentar seus filhos.(352)

Muitas prisões femininas obedecem essas regras, mas não todas. Na Penitenciária Feminina de Manaus, os bebês só podem ficar com suas mães por uma semana após o nascimento já que o estabelecimento é demasiado superlotado para que eles possam ficar mais tempo. Uma situação ainda pior ocorre no 18o DP de São Paulo, onde as mulheres não podem ficar com seus filhos nem mesmo durante a primeira semana de vida, mas devem entregá-los no hospital. Falamos com duas mães que deram à luz menos de um mês e meio antes de nossas visitas: ambas tinham visto seus filhos apenas uma vez desde o parto.(353)

Alguns estabelecimentos, por outro lado, têm regras mais flexíveis para mães detentas, permitindo que fiquem com seus filhos durante vários anos. A Penitenciária Feminina Madre Pelletier de Porto Alegre é um desses estabelecimento: abrigava doze crianças, desde bebês até crianças de cinco anos de idade à época em que visitamos o local.

Visitas Conjugais

As políticas de visitação conjugal de muitos estados discriminam as detentas. Enquanto os detentos tendem a receber livremente essas visitas, com pouco ou nenhum controle sendo exercido pelas autoridades estatais, as detentas às vezes não podem recebê-las ou recebem-nas sob condições extremamente restritas.

São Paulo é um dos estados que não permite a visita conjugal às detentas, embora o faça com relação aos detentos. Quando a Human Rights Watch visitou a Penitenciária Feminina de São Paulo em novembro de 1997, disseram-nos que um projeto instituindo essas visitas estava a caminho, embora as autoridades carcerárias não pudessem dizer quando ele teria início.(354)

A maioria das prisões femininas permite visitas conjugais às mulheres que obedeçam a uma série de requisitos. Na Penitenciária Feminina Madre Pelletier de Porto Alegre, por exemplo, as detentas deveriam ter boa conduta e um relacionamento estável com um homem, além de passar por uma série de exames médicos (para HIV e doenças sexualmente transmissíveis). Além disso, tanto a detenta como seu parceiro deveriam ser entrevistadas por um assistente social.

As visitas conjugais só foram instituídas na prisão feminina de João Pessoa em dezembro de 1997, uma semana antes da visita da Human Rights Watch. "Para evitar a promiscuidade", o diretor da prisão tinha imposto uma série de requisitos para as visitas conjugais, limitando-as às mulheres que eram casadas ou tinham "companheiros estáveis", e histórico de boa conduta.(355)

Depois de convencer o Juiz de Execução Penal local da eficácia desses requisitos, a diretora conseguiu uma ordem judicial permitindo as visitas.

Por causa de restrições como essas, o número de mulheres que recebem de fato visitas conjugais é baixo. Na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre, apenas nove dentre as 146 detentas podiam receber tais visitas; na Casa de Recuperação Feminina Bom Pastor, em João Pessoa, apenas cinco dentre 65 detentas podiam recebê-las; na prisão de Manaus, seis dentre sessenta e oito. (A exceção nesse aspecto era o pavilhão feminino na Penitenciária Central João Chaves, em Natal, onde praticamente todas as detentas podiam receber visitas conjugais.)

Em geral, o tratamento dramaticamente diferente de mulheres e homens no que concerne à concessão dessas visitas constitui uma discriminação com base no sexo, proibida pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pela Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ambos ratificados pelo Brasil.(356) A recusa tradicional de visitas conjugais a detentas reflete a dificuldade historicamente maior da sociedade em reconhecer ou lidar de forma confortável com a sexualidade feminina e as atuais regras de visitação utilizadas por muitos estado continuam a reforçar esses estereótipos sexistas. Mesmo quando as autoridades carcerárias não interferem com o comportamento possivelmente promíscuo dos detentos, nem tomam medidas para evitar a propagação de doenças sexualmente transmitidas em prisões masculinas, ainda assim só permitem às detentas atividade sexual monogâmica rigidamente controlada e apenas para algumas mulheres cuidadosamente selecionadas.

Nem mesmo a possibilidade de que as detentas possam engravidar obscurece a discriminação. A gravidez como condição é inerente e indissociável do fato de ser mulher. Tendo como alvo uma condição que só as mulheres podem experimentar, a discriminação com base na gravidez é em si mesma uma forma de discriminação de gênero. Na verdade, nas ocasiões em que a discriminação com base na gravidez tem sido examinada à luz das normas internacionais de direitos humanos, os órgãos encarregados desse exame têm repetidamente classificado essa forma de discriminação como uma forma de discriminação sexual.(357)

Em pelo menos uma jurisdição, deve-se ressaltar, os pedidos de visitas conjugais de detentos e detentas são regulados pelas mesmas normas. Brasília restringe as visitas conjugais de detentos e detentas a seus cônjuges ou companheiros estáveis (condicionadas a provas de que o casal já havia vivido junto) e determina que ambos os parceiros sejam testados para HIV e doenças venéreas.(358)

Disseram-nos que o estado do Rio de Janeiro impõe os mesmos requisitos para visitas conjugais de detentos e detentas, mas não pudemos confirmar essa afirmação.

Trabalho, Educação e Outras Atividades

Em geral, as detentas têm mais acesso ao trabalho do que os detentos. Na maioria das prisões femininas que a Human Rights Watch visitou, a grande maioria das detentas estava empregada. Na Penitenciária Feminina de São Paulo, por exemplo, 340 dentre 388 detentas estavam empregadas, sendo 288 em oficinas, confeccionando itens como cadernos, cartões e roupas íntimas, enquanto as demais faziam serviços de faxina dentro da prisão. Todas as detentas da Penitenciária Feminina de Manaus, exceto uma, estavam empregadas quando visitamos o estabelecimento em dezembro de 1997, principalmente confeccionando produtos de artesanato, tais como bonecas. Até julho de 1997, quase todas as detentas da Casa de Detenção Feminina, em Tatuapé, também em São Paulo, tinham oportunidade de trabalhar.(359) O salário das mulheres também tende a ser muito melhor, já que as detentas geralmente recebem ao menos o salário mínimo estipulado pela LEP.

Oportunidades educacionais, profissionalizantes e culturais são menos freqüentes mas ainda assim, mais acessíveis do que nas instituições masculinas. Além das disciplinas básicas, são oferecidas aulas de arte, dança e música em algumas das penitenciárias. Mulheres do pavilhão feminino da Penitenciária Central João Chaves, em Natal, disseram, contudo, que as aulas começam mas nunca vão além das duas primeiras sessões, assim impossibilitando a obtenção de um diploma em qualquer área.


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